terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Alien versus Predador

Ou o velho jogo do nós contra os outros,
qualquer outro que seja um pouco mais diferente.


Não é de hoje que utiliza-se a imagem de monstros ou criaturas que se afastam, física ou psicologicamente, das características de um ideal de ser humano bom, ético, dadivoso – ou como atualmente também pode ser chamado: cidadão de bem – para dar medo em crianças e ensiná-las a identificar “mocinhos” e “bandidos”.

Os contos de fadas são baseados nessa visão maniqueísta e alguns títulos cinematográficos recentes seguem o mesmo roteiro. Contudo, mais do que apontar para uma criança que se ela andar sozinha um desconhecido pode levá-la ou que ela pode se perder e se meter em encrenca; obras como Alien Versus Predador podem servir como exemplo do uso dos meios de comunicação que contribui para o fortalecimento de uma determinada ideologia, uma forma de se ver, de ver o mundo e os outros que o habitam.

Alien versus homem civilizado
Em artigo publicado em sua coluna na Revista Cult, de novembro de 2009, Márcia Tiburi define o personagem que dá título ao filme que está completando 30 anos: “O monstro é o verdadeiro herói do filme, pois apenas ele foi, de fato, atacado em seu habitat e precisa se defender”. Mas isso é tratado como um mero detalhe pelo roteiro do filme. Assim como é uma miudeza o fato de que o sistema que comanda a nave e dita as ordens à tripulação tem o único objetivo programado que é o de estudar essa forma alienígena, não importando se os seres humanos correm risco de morte.

Não está em jogo o porquê real da missão, a invasão ou possíveis erros ou manipulação do sistema; apesar de ter sido apresentado de alguma forma no curso do filme. O que se destaca é o fim do diferente, o extermínio do outro que em nada fisicamente se assemelha ao humano – já que sua forma física remete mais a um bicho, um inseto –, mas que possui características outras que o tornam mais fortes e mortais que os oriundos da Terra. E numa espécie de Lei da Evolução as avessas, o mais forte – e, portanto, segundo Darwin, melhor adaptado para sobreviver – precisa ser aniquilado. Mas isso também porque lança-se mão de atributos, que não apenas o da força, para fundamentar a matança. Num jogo de conceitos e novas interpretações, os papéis se invertem e o humano, mesmo perceptivelmente mais frágil, passa a ser o grande favorito enquanto o outro passa a carregar as características do perdedor.

O que não é muito diferente de algumas justificativas históricas que apontavam para a inferioridade do negro em relação ao branco. Como descreve o Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia, da UFMG, Sergio Danilo Pena: “A ‘solução’ encontrada para conciliar a consciência cristã com as desumanidades a que os senhores submetiam seus escravos foi a invenção de uma ideologia que relegava os africanos a um status biologicamente inferior, assim negando-lhes a plena humanidade”.

O Alien, como o negro foi durante anos, é o selvagem, o bárbaro, o não civilizado; uma vez que nem mesmo parece possuir código de linguagem compreensível aos humanos civilizados.

Predador: uma imagem espelhada do homem civilizado
Exibido pela primeira vez em 1987, o filme O Predador apresentava o monstro com uma visível forma humana (onde o grotesco de sua aparência era escondido por capacete e armadura) e um tipo de dreadlocks – penteado bastante utilizado por integrantes do movimento rastafári. E desde o lançamento, ele foi percebido como um personagem mais complexo. Diferente do Alien, ele carregava em seu perfil a marca de um guerreiro-caçador, que testa sua destreza em lutas com outros seres que julga capaz de enfrentá-lo. Mas isso tudo, sem se esquecer do rigoroso código de ética dos Predadores que proíbe luta, por exemplo, com seres desarmados ou doentes, a não ser que estes ataquem primeiro.

O roteiro do Predador vai construindo uma relação na qual mocinho e bandido passam a ter seu lugar ao sol. Assim, o monstro, que começa o filme matando pessoas, recebe o reconhecimento do herói (tão ser humano quanto os figurantes mortos), que mesmo o tendo vencido, deixa transparecer um sentimento de admiração, pouco antes de subirem os créditos.

O Predador encarna o papel do que Edgar Morin chama de “olimpianos modernos” (o autor faz referência ao termo cunhado por Henri Raymond) que são produzidos pela cultura de massa a partir do encontro do real com o imaginário e vice-versa. Sobre a natureza deles Morin descreve: “Os olimpianos, por meio de sua dupla natureza, divina e humana, efetuam a circulação permanente entre o mundo da projeção e o mundo da identificação. Concentram nessa dupla natureza um complexo virulento de projeção-identificação. Eles realizam os fantasmas que os mortais não podem realizar, mas chamam os mortais para realizar o imaginário”. (MORIN, 2007)

Dessa forma, o Predador pode se transformar num mais-do-que-humano, ele pode ocupar o posto de herói. E para isso também não lhe faltam qualidades natas aos mocinhos: inteligência superior (ele é de uma civilização tecnologicamente mais avançada que terráquea), possui um sistema de comunicação tão complexo quanto o humano, consegue seguir os rígidos códigos de conduta e às vezes estará em situações em que será obrigado a fazer escolhas. Mais humano impossível, não fosse por sua forma física que teima em acender o sinal amarelo e faça com que ele volte, nas seqüências seguintes, a perseguir e ser perseguido.

Alien versus Predador: como os homens estabelecem alianças?
“A identidade é uma construção que se narra. Estabelecem-se acontecimentos fundadores, quase sempre relacionados à apropriação de um território por um povo ou à independência obtida através do enfrentamento dos estrangeiros”. (CANCLINI,2008)

Depois de estrelarem suas próprias produções e terem suas identidades forjadas pelo curso do roteiro, Alien e Predador se enfrentam. Nesse filme, lançado em 2004, um milionário americano descobre uma pirâmide na Antárdida, a 700 m da superfície, e decide contratar uma equipe para explorá-la. No decorrer do filme, o grupo descobre que a pirâmide foi projetada por alienígenas, os Predadores, reverenciados como Deuses para as civilizações antigas, que inclusive faziam rituais de sacrifícios para eles. Depois da morte de quase todos do grupo (pelos Aliens e também pelos Predadores) resta uma mulher que consegue estabelecer um tipo de “conversa” com o Predador e ambos passam a lutar contra os, agora únicos, monstros do local.

Na realidade, a pirâmide funcionava como local no qual os Predadores faziam seus rituais de passagem. Para isso, eles mantinham aprisionado um Alien (que, nesse caso, pode ser associado a uma abelha rainha) e utilizavam os humanos entregues nos sacrifícios para hospedar os ovos e gerarem novos Aliens para que os Predadores pudessem duelar.

Novamente, o fato dos Predadores terem matado humanos ou do Alien ser mantido como um escravo reprodutor passam ao largo de qualquer consciência ética ou moral que pudesse, minimamente, por exemplo, fazer questionar o porquê de tanta fúria da mãe Alien, que apenas tentava proteger seus filhotes. Em nenhum momento do roteiro o Predador ocupa o banco dos réus, pelo contrário, como expresso nas palavras do produtor John Davis, no site oficial do filme: “Ele não quer deixar nenhuma carnificina para trás na Terra que pudesse perturbar o equilíbrio do planeta. Isso dá ao personagem uma certa dignidade”.

Mas afinal, os Predadores não são também invasores alienígenas? Por que então os seres humanos tendem a formar alianças com eles? Talvez a resposta esteja na equação: na luta contra os estranhos/ os outros terá a aliança aquele que se assemelhar mais ao que for instituído como padrão ou que pelo menos proporcione alguma vantagem para a manutenção da “ordem”, do status quo.

E assim é com o Predador, que por se assemelhar aos humanos tem mais chance de se transformar em companheiro de batalha e ter suas características próprias (como o fato de matarem pessoas que se tornou secundário no roteiro) deixadas de lado, em nome da luta contra um inimigo comum. Como também ocorre com os afro-americanos nos Estados Unidos que, apesar do forte racismo que tende a tratá-los como inferiores, engrossam as forças armadas indicando que para ocupar um cargo executivo eles não servem ou são vistos com reserva; mas para defender o Tio Sam são ótimos. Continuando em solo americano outro exemplo vem da aliança que os EUA fizeram com osTalibans, de Osama Bin Laden, contra a União Soviética; passada a Guerra Fria, eles se tornaram inimigos de carteirinha para os americanos.

O filme Alien versus Predador pode ser entendido como um espelho da sociedade em que vivemos. Nele, para além dos efeitos especiais e o roteiro com proposta ficcional, percebe-se que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (Debord,2008), que reproduzem, propagam a estrutura de organização do poder (econômico, político, social) vigente, uma vez que são produzidas, ainda em larga escala, pelos oriundos das classes dominantes, que detém os meios de produção e o capital para investir.

Uma proposta intercultural para Alien e Predador
Em seu artigo Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença, Vera Maria Candau (professora titular do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) destaca três desafios em trabalhar as relações entre educação intercultural e direitos humanos, com a proposta de construir “uma sociedade democrática, plural, humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade”.

Para a professora o primeiro obstáculo reside na quebra dos preconceitos já tão enraizados e naturalizados na sociedade que fortalecem o abismo do “nós contra os outros”. Num segundo momento, deve-se buscar o “reconhecimento e a valorização das diferenças culturais, dos diversos saberes e práticas”. Já o terceiro desafio aponta para o “resgate dos processos de construção das identidades culturais, tanto no nível pessoal como coletivo”, a autora ainda destaca que “um elemento fundamental nessa perspectiva são as histórias de vida e da construção de diferentes comunidades socioculturais”.

Se os humanos das produções cinematográficas citadas ao longo do texto adotassem o que propõe Candau – pincelado no parágrafo anterior – os filmes teriam, seguramente, outro desenvolvimento e roteiro. Mais do que tentar classificar como mocinhos e bandidos ou o que o grupo tal pode oferecer como vantagem, poderia refletir em possibilidades de convivência com a diferença, como Debord destaca: “A heterogeneidade multitemporal e multicultural não é um obstáculo a ser eliminado, mas um dado básico em qualquer programa de desenvolvimento e integração” (2008). Talvez assim, o ser humano pudesse afirmar, sem medo de cometer erros, que está evoluindo e ao invés de repetir mais do mesmo.

Referências bibliográficas citadas:

CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v. 13, n.37, p. 45-56, jan/abr. 2008.

CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro. Editora UFRJ: 2008

DEBORD, Gyu. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro. Contraponto: 2008

MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX. Volume 1: Neurose. Rio de Janeiro. Forense Universitária: 2007.

PENA, Sérgio Danilo. O DNA do racismo. http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/deriva-genetica/o-dna-do-racismo

TIBURI, Márcia. Alien. Para comemorar os 30 anos do monstro que nos faz pensar no futuro. Revista CULT, ano 12, n. 141, p. 38 e 39. Novembro. 2009

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