A literatura é uma forma de representação do fenômeno cultural humano, de representação do pensamento de uma sociedade. Mais do que uma função estética e de proporcionar prazer a quem lê, a literatura, tem antes de tudo, uma função social, de ser retrato da sociedade a qual ela pertence. Quem lê deve enxergar no que lê algo mais do que está sendo lido, deve poder perceber todo o contexto social e histórico presente em qualquer obra literária.
Segundo Portella (1986), o trabalho do escritor, é também um trabalho de instrução. Não se pode vender ao povo uma literatura de baixo nível, o que seria uma atitude cômoda e deformadora. Para ele, a literatura deve ser um instrumento formador, cabendo ao intelectual discutir, criticar, compreender a sua realidade.
A questão da identidade nacional, obviamente se inclui neste processo, a literatura pode e deve fazer parte desse processo de construção de uma identidade cultural, sendo um dos eixos fundamentais de nossa realidade cultural. O escritor tem um importante papel a desempenhar na formação, no nosso caso, de um modo de visão brasileiro, de um modo próprio de nos ver. O intelectual deve interferir ativamente no processo de emancipação nacional, utilizando da literatura para apreender e expressar nossa realidade nacional.
Hall (1999) explica que nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas participam da idéia de nação tal como representada em sua cultura nacional. Acrescenta, ainda, que as culturas nacionais, aos produzir sentidos sobre a nação, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades e que as nações se diferenciam entre si pelas formas como elas são imaginadas. O autor, posteriormente, acrescenta ainda que sem um sentimento de identificação nacional o sujeito experimentaria um profundo sentimento de perda subjetiva, ou seja, ao mesmo tempo em que ele deve existir e agir como um ser autônomo, ele precisa se perceber como parte de algo mais amplo, de um todo do qual faz parte.
Alguns importantes movimentos literários pensaram de maneira bastante intensa esta questão da identidade nacional. O primeiro deles foi o Romantismo, cuja primeira fase foi a principal responsável por pensar a idéia de um Brasil nação.
O Romantismo é considerado pelos principais pesquisadores da literatura brasileira como o primeiro movimento literário propriamente nacional. Antes do Romantismo, ocorriam na verdade, manifestações literárias no Brasil, com referências externas e caráter difuso. Estas manifestações, na verdade, eram produzidas por homens educados na metrópole, com a mentalidade da metrópole. É só a partir da metade do século XVIII, que se pode começar a falar em uma literatura nacional como eixo de nossa cultura, e não mais como produções individuais reflexos da cultura européia.
Candido (2004) confirma isso, citando que a nossa literatura se inicia como uma continuação da literatura européia e somente a partir, de 1822, com a nossa independência, e com o movimento romântico é que o Brasil passa a adotar uma teoria nacionalista incomodada com tal fato, tentando minimizá-lo. Procura-se, neste momento, exaltar o que teríamos de original, de diferente, “como se quisesse descobrir um estado ideal de começo absoluto”. Tal atitude, nada mais é, que uma forma de afirmação política, que exprime o desejo de uma nação em formação de descobrir sua identidade, afirmando-a ao mundo e sendo reconhecida por ele.
É importante lembrar, que como diz Gumbrecht (1999), tanto os novos quanto os antigos empregos do conceito de identidade sempre estão motivados ou por nostalgia ou por ressentimento. Em nosso caso, podemos dizer que por ambos: nostalgia de um passado glorioso, talvez nunca existente, e ressentimento pela destruição desse passado pelo processo de colonização. Essa soma gerou uma busca por uma identidade verdadeiramente brasileira, que retomasse nosso passado e nos impulsionasse ao futuro como uma nação grande, valorizada pelo mundo.
Hall (1999) confirma o que aqui foi dito, explicando que o discurso da cultura nacional se vê entre o desejo de retornar a glórias passadas e o impulso de avançar em direção ao futuro. Ele vê a cultura nacional como uma “comunidade imaginada”, formada pela união das memórias do passado, com o desejo por viver em conjunto e a perpetuação da herança. Uma cultura nacional busca unificar todos os seus membros numa mesma identidade nacional, representando-os como pertencentes a uma grande família nacional.
Com a independência, desenvolveu-se a idéia de que a nossa literatura deveria ser diferente da portuguesa, pois “um país independente possui uma literatura independente” (Candido, 2004). Portanto, é a partir do romantismo que o nosso comportamento literário passa a ser caracterizado como nosso, como brasileiro. A idéia de Brasil visto como nação, com uma cultura e identidade própria só é concebida a partir daí. Entretanto, é ainda uma idéia ingênua de nação, vista como pura e intocável.
Este foi um momento de intensa participação ideológica da literatura, sendo nossos escritores importantes participantes desses acontecimentos. A literatura adquiriu uma nova face, voltada para esse projeto de construção de nação. A poesia se tornou patriótica, e vários foram os ensaios políticos e os sermões nacionalistas produzidos pelos intelectuais desse tempo.
No romantismo, há uma predominância de um trabalho regionalista, com valorização do que é nosso em detrimento do que não é. Havia um esforço para ser diferente, buscava-se a afirmação de nossas peculiaridades. Nossa identidade cultural estaria marcada pelas nossas diferenças. O objetivo era “criar uma expressão nova e, se possível única, para manifestar a singularidade do país e do eu” (Candido, 2004).
Essa busca pelo que é original do Brasil acabou por levar os escritores a encontrar o que queriam na figura do índio, que seria o verdadeiro brasileiro. O caráter legítimo do texto estaria na definição de um caráter brasileiro, que por sua vez, se encontraria no tema indígena. O nativismo passou a ser, portanto, o principal tema das obras literárias deste tempo. Entretanto, é ainda, um nativismo pitoresco, de conotação francamente patriótica, derivado de nossas origens coloniais. .
Candido (2004) afirma que, na verdade, por ocasião da Independência eles (os índios) já estavam instalados no papel de elemento simbólico da pátria, prontos para o retoque decisivo que os românticos lhe dariam, assimilando-os ao cavaleiro medieval, embelezando seus costumes, emprestando-lhes comportamento requintado e suprema nobreza de sentimentos.
“O indianismo foi um fenômeno de adolescência nacionalista brasileira” (Candido, 2004). Entretanto, foi importante histórica e psicologicamente, por dar ao brasileiro a ilusão de ter um antepassado fundador glorioso, digno e honrado. Idealizado pelos românticos, o índio satisfez a necessidade de um país jovem e mestiço de tornar sua origem algo que possa dignificá-lo.
De um outro lado, o Romantismo vem revelar um novo país através do romance regionalista, que vinha descrevendo lugares e modos de vida diversos desse país de tão grandes proporções. O regionalismo estava aplicado em descrever o interior de nosso país, seus costumes, seu povo, tudo o que o diferenciava dos padrões urbanos. Descreveu extensivamente nosso país, revelando um Brasil até então desconhecido por muitos brasileiros. Isso foi de fundamental importância, principalmente pelo fato de mostrar todas as diferenças como sendo nossas, tudo e todos faziam parte de um mesmo país, e dessa forma, a concepção de nação se ampliava a um maior número de brasileiros.
Um outro fator de valorização de nossa identidade se encontra na valorização de nossa língua. Portella (1986) cita que é imprescindível ver a literatura brasileira como a expressão de uma vivência brasileira. E para expressar algo brasileiro vivido pelos brasileiros é necessário um instrumento próprio, que nada mais é que a linguagem, vista como base de um estilo nacional. Porque, para ele, a linguagem é meio de apreensão e de expressão da realidade. Portanto, uma literatura brasileira deveria utilizar uma linguagem brasileira – idéia que vai ser retomada posteriormente com o movimento modernista.
Apesar de conhecer muito bem a língua portuguesa e escrever com perfeita correção com relação à gramática normativa, os escritores românticos procuraram flexibilizar o uso da língua, procurando não só tonalidades diferentes para descrever a nossa natureza e a nossa sociedade, mas também buscando uma língua que se identificasse com a nossa nação, uma língua que pudesse manifestar nossa identidade cultural.
Prosseguindo na herança deixada pelo Romantismo, o Modernismo, já no século XX vem promover novamente uma reavaliação da cultura brasileira. Segundo Candido (2004), ambos os movimentos não foram apenas movimentos literários, mas também movimentos culturais e sociais de âmbito bastante largo. Um se inicia juntamente com o nosso processo de independência. O outro surge por volta de cem anos depois e juntamente, com o centenário da Independência, vem uma revisão do Brasil por si mesmo, buscando novas perspectivas em uma sociedade em constante transformação.
Assim como outros movimentos, o Modernismo surge influenciado por movimentos europeus. Entretanto, é uma influência que se modifica ao chegar aqui e gera algo que é nosso, próprio de nossa cultura. Foi um movimento complexo e em alguns pontos, contraditório, mas foi o movimento com maior capacidade transformadora já visto no Brasil. Considerado inicialmente como excêntrico pela crítica nacional aos poucos foi assumindo uma posição mais madura e se tornando mais produtivo. Tudo o que era produzido, se baseava em um saber seguro, consciente, fruto de pesquisas e da grande capacidade de reflexão.
Acima de tudo, os artistas modernistas defendiam a liberdade de criação e, principalmente, de experimentação, o direito de não seguir padrões, regras. Pregava a não mecanização da arte. Assim como os românticos, recorreram ao primitivismo, entretanto, não se utilizaram mais daquele índio civilizado, cavalheiro. Os modernistas, como friza Candido (2004), procuraram no índio e no negro, agora sim retomado como elemento fundamental na formação de nossa cultura, o primitivismo que foi capaz de quebrar as convenções da metrópole, de tornar a cultura dominante em nossa cultura.
A obra modernista visava ser um retrato satírico de nosso povo, nossa cultura. Pretendia elevar nossa realidade local, assimilando destrutivamente a cultura européia e recriando-a a nossa maneira. Os modernistas olhavam a realidade de maneira mais crítica, denunciavam o modo até então vigente de mostrar o país como extensão do modo de vida das elites tradicionais. Estes artistas perceberam que o Brasil não era mais o mesmo e procuraram mostrar esse Brasil, com negros, índios, mestiços, imigrantes, proletários e campesinos, ricos e pobres.
Novamente retomaram a questão da língua, já pensada pelos românticos. Segundo Candido (2004), os modernistas valorizavam temas do cotidiano, quebravam a hierarquia dos vocábulos, adotando expressões coloquiais mais singelas, algumas até mesmo vulgares. Combatiam a mania gramatical e pregavam o uso de uma língua, segundo as características diferenciais do Brasil, incorporando o vocabulário e a sintaxe irregular de um país onde as raças e as culturas misturam. Ou seja, os modernistas levaram ao extremo aquilo que o romantismo pregava ainda de maneira modesta. Legitimadas pelo uso brasileiro, as formas incorretas tornam-se corretas.
Somos sim uma cultura que é um prolongamento da cultura européia. Isso não podemos e não devemos negar. Mas, como frisa Portella (1986), uma cultura de prolongamento com matizes de tal modo múltiplos e nítidos, que terminaram por lhe atribuir uma fisionomia própria. Nossa sociedade não se desenvolveu através da continuidade das culturas locais, que ao contrário, foram dizimadas. Ela se formou através da transposição da cultura da metrópole, adaptada a essa nova realidade - nossa realidade. Desde cedo, foi uma sociedade construída em cima de contrastes entre o primitivo e o avançado.
Candido (2004) diz que nossa literatura é uma literatura que se derivou de uma outra, assim como nossa cultura, mas que colocou algo de próprio nela, tomando-a para si na mesma proporção em que a colônia ia se transformando em nação, desenvolvendo sua identidade. Nossa literatura não nasceu aqui: veio pronta de fora para transformar-se à medida que se formava uma sociedade nova, uma sociedade brasileira mais identificada com si mesma.
Segundo Portella (1986), cultura é realidade. Não é sonho ou abstração: é fenômeno vivido, antes de mentalizado. O produto estrangeiro, para ter alguma utilidade, deve ser integrado, como que nacionalizado. A prática revolucionária é ato de cultura. Revolucionar é romper com o estabelecido. É repelir em nosso passado tudo o que significou submissão.
Romantismo e Modernismo foram capazes de perceber esses conceitos e ambos os movimentos, de acordo com seu contexto histórico, procuraram colocar esses conceitos em prática. O Modernismo, com certeza, foi um movimento muito mais profundo, crítico e consciente de seu papel que o Romantismo, mas foi este o movimento que deu o passo inicial na construção de uma identidade cultural brasileira. Foi um movimento de certa forma inocente, mas que ocorreu num Brasil ainda inocente de seu papel no mundo, de seu conceito de nação. Já o Modernismo vem a ocorrer num período de maior consciência artística nacional, o caminho já havia se iniciado e prosseguido com o Realismo, o Naturalismo, e outros movimentos literários que serviram para assentar tudo que já havia sido proposto pelo Romantismo e abrir caminhos para as novas idéias que viriam com o Modernismo.
Como diz Portella (1986), a realidade fenomenal brasileira é muito mais rica e forte do que a consignada em nossa literatura. Por isso, muitos aspectos de nossa vida e de nossa alma como brasileiros ainda não foram captados pelos nossos escritores. Cabe à presente e às futuras gerações captarem esses elementos ainda excluídos de nossa literatura, tendo cada vez mais consciência do papel da obra literária na construção da identidade cultural de um país.
v Referências Bibliográficas:
CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.
HALL, Stuart. As culturas nacionais como comunidades imaginadas. In: A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DPA, 1999.
PORTELLA, Eduardo. Literatura e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986.
ORTIZ, Renato. Da Raça à cultura: a mestiçagem e o nacional. In: Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
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Análise bem interessante. A todo momento, pensei em nosso grupo "Comunidade", do Silverstone, que afirma que a noção da identidade, da comunidade, foi desenvolvida ao longo também dos meios de comunicação. E, com certeza, foi preciso esse primeiro momento literário, para que se pudesse chegar, dia a dia, a uma identidade nacional, por exemplo. Achei essa parte interessante: "Com a independência, desenvolveu-se a idéia de que a nossa literatura deveria ser diferente da portuguesa, pois “um país independente possui uma literatura independente” (Candido, 2004). Portanto, é a partir do romantismo que o nosso comportamento literário passa a ser caracterizado como nosso, como brasileiro."
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